A Tragédia do Colmeal

Colmeal, outrora designada de Colmeal das Donas é uma aldeia abandonada da freguesia que ainda lhe deve o nome, situada no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo. De origens remotas (surge pela primeira vez mencionada em documentos papais e leoneses do século XII) tem uma história curiosa que atingiu o dramatismo a partir da década de 40 do século passado que, começando por fazer correr rios de tinta na imprensa regional e nacional nos anos que se seguiram à revolução dos cravos, tem vindo a ser cada vez mais mediatizada e a constituir motivo de fascínio por parte das novas gerações que a têm feito passar nos meios de comunicação social nas mais variadas formas, que vão desde as interessantes versões romanceadas de Felícia Cabrita até às reportagens de Sandra Invêncio e de Gabriela Marujo que exploram as memórias e lamentações dos seus antigos habitantes e expõem toda a verdade nua e crua da história desta «aldeia fantasma».


Memórias e lamentações

António Bordalo, 72 anos esgalhados na terra, tenta esquivar-se a uma velha maleita que se lhe encostou à alma. As pernas escanzeladas descobrem a força e a agilidade do antigo pastor e cortam o silvedo como lanças.

A espreitar do vale, o campanário da igreja paroquial do Colmeal dá sainete à serra. António estaca, no olhar o desconcerto, na boca mil maldições. Deus noutro tempo não sabia o que fazia. A porta do templo saiu dos gonzos, o telhado ruiu e o sino, que tinha escapado às invasões francesas, voou com alguma dança macabra. O velho procurava em volta vestígios do cemitério que as silvas escondem, entra na igreja, tropeça.As pedras de granito das sepulturas foram levantadas, crânios estilhaçados e ossos cortam-lhe os passos. Abre a porta da sacristia que dá para o cemitério, arbustos encorpados como gente, onde os bichos daninhos se acoitam, impedem a passagem, e ele quebra cego na dor: «Bandidos, ladrões, que aqui tenho meus avós, minha mãe, meu sangue».

António atravessa a aldeia fantasma à procura de velhas lembranças. O telhado da sua antiga casa tombou e à porta uma mata densa impede-lhe a entrada. No solar de Pedro Álvares Cabral, os frescos nas paredes despedaçadas, e a pedra de armas ainda resistem ao logro do tempo. As vacas são agora as senhoras da casa fidalga, nos antigos salões rompem com os velhos moldes feudais aliviando aliviando a tripa e protegem-se do sol implacável de Julho.

Sentado na escadaria, o velho solta a memória, alegrias e tristezas, lendas e medos de gente da serra, habitantes de uma aldeia com passado que teve o nome assente nos cronicões. Ali tinham nascido e morrido seus antepassados, avós lusos e iberos. O pai era lavrador e tinha de seu uma junta de bois e muitas colmeias. Viviam apenas da lavoura e quando não havia agricultura iam à jeira para terras de famílias abastadas. A água não faltava nas hortas e pomares, e as frutas e as hortaliças do Colmeal eram muito cobiçadas. Mas quando se aproximava Maio, antes das colheitas, não sobrava trigo para trocar por sardinha ou rabos de bacalhau, e os mais pobres não tinham outro passadio que não fosse pão com azedas que cresciam nas paredes.

Ia o século a dar os primeiros acordes e António, mal completara 7 anos, começou a galgar a serra com o rebanho do feitor. José Feliciano era bom homem, e ainda ia longe o tempo dos desacertos. Calçou-o, foram os primeiros sapatos que conheceu, tamancos de pau ferrados. Dava-lhe a merenda e ao fim do ano oferecia-lhe um animal. António não pedia mais à sorte, que isso era quase pecado, e aos poucos conseguia uma cabrada. O rapaz andava com o rebanho à folha pela serra, sem quebranto. Um pau de choupo servia de arma contra os lobos e para vergar o fole a quem não viesse por bem. Pelava-se para abater o lobo ou a raposa e mostrava-se depois de povo em povo, a fazer gala da presa e a arrecadar ovos e farinha pelo serviço prestado aos galinheiros. Mas quando se aproximava Junho arrepelava-se se tinha que passar pela Cova da Moura, uma sepultura do tempo da moirama, encerrada numa fraga. Mantinham velhos pastores, que passavam dias e noites a cismar naqueles serros que arranhavam o céu, que a moura saía do seu encanto pela festa de S. João, e à noitinha estendia a sua roupa à orvalhada para não ganhar traça. As mulheres, a quem a natureza tinha concedido a fraqueza, quando vinham da ceifa não olhavam para trás para não caírem no feitiço. António com coisas dessa natureza nunca mofou, e era certo que depois da meia-noite baixava as trancas para se defender do andaço dos lobisomens que batiam às aldrabas a ver se pegava, e deitavam coices às portas.

Ao domingo abandonavam os sachos e as gadanhas, era dia de folgança. De manhã Padre Seixas, mais conhecido por Cieiro, mercê da comparação que o povo fazia entre ele e o vento nordeste, violento e frio, celebrava; ainda a missa era cantada. A igreja estava apinhada de povo, muito afeiçoado às coisas de Deus. O santo predilecto era o Pai eterno, que tinha uma bola na mão, representação do mundo. E eles andavam sempre muito alinhados com as leis divinas para não desfeitarem o santo, porque sabiam que se o globo caísse se afundava o mundo.

Mal a noite se punha, os rapazes faziam a ronda pelo povo, tocando concertina. As moças casadoiras juntavam-se à volta da fogueira e o baile corria até de madrugada. Não havia bicho-careta dos arredores que faltasse à festa, vinham de machimbo ou a butes no engodo das raparigas que tinham fama de muito galantes. Felisbela já andava embeiçada por um rapaz, um ás da harmónica, e nunca faltava à dança. Só tinha três fardas para pôr no corpo, mas chegava para agradar. O pai tinha-a debaixo de olho com medo que o vento a emprenhasse e punha-se debaixo do lampião para não perder qualquer atrevimento do noivo. Era leve como as penas e alegrava a roda com a sua graça. O lenço caía e mostrava o cabelo entrançado, grosso e brilhante, a querer desprender-se do carrapito. Os moços de fora levavam rebuçados que ela não comia temendo alguma miscelânea que a metesse doida. Era amiga da pândega mas sem dar muito paleio para não cair nas bocas do mundo e casar com honra e crédito. As romãzeiras engalanavam a aldeia, e os mais velhos abancavam em pedras e compunham a festa com relatos de coisas antigas e os enigmas das origens. Colmeal pertencera ao reino de Leão mas com as rapsódias da história passou para a coroa portuguesa. As demandas com os espanhóis despovoaram os lugares da serra e D. Afonso V deu-lhe carta de Couto em 1540, era senhor desse povo João Gouveia. Com a morte do fidalgo andou aquela terra de senhor para senhor até acabar nas mãos de Pedro Álvares Cabral. Felisbela que não conhecia letra nem livro, sabia que a sua aldeia existia desde o início do mundo e, como toda a gente, em tudo punha milagres. Por isso pelava-se para ouvir Amadeu, o poeta da terra, que em tempos ia a Belmonte, por soutos e moitas, altos e baixos, entregar aos cabrais um braço de cebolas e umas tantas galinhas pelo foro do povo.

Amadeu mexia em verso no passado e trapaceava as crónicas. Junto à fogueira com a garrafa de vinho à perna, o poeta contava à sua maneira o que já ouvira dizer a seus antepassados sobre a origem da aldeia. Era uma vez um pastor deste lugar que entrou em desassossego com um sonho que o perseguia. Alguém lhe dizia que fosse a Belém procurar o seu bem, e de tanto malucar com este mistério, um dia foi. Ao chegar à beira de uma fonte, encontrou um pastor negro que lhe deu a chave da mensagem. E ele partiu às pressas, para junto do seu gado que andava no pasto, e debaixo de umas lajes encontrou uma cabra e um chibo de ouro. Por ser homem de honra não se alapardou com o tesouro e foi ao palácio entregá-lo ao rei. O monarca, satisfeito com a oferenda, disse ao pastor que lhe satisfazia um desejo. E o homem pediu-lhe umas terras para amanhar, e pastos para as suas cabras, e assim nasceu o Colmeal.

Felisbela quando mirava o solar dos Cabrais não duvidava da lenda, na pedra de armas, gravado, uma cabra e um chibo.

Aires Cruz trava o passo na casa dos Cabrais. Uma ruína apenas reconhecível pelo brasão: um chibo e uma cabra. Aqui, neste mesmo sítio, há 12 anos, depois de me ter contado a sua história e da sua gente, avisou-me que tinha um segredo.

Um dia, talvez, o partilhasse comigo. Tentei esgravatar cada vez mais a memória do homem, apanhá-lo numa curva acidentada do tempo e apoderar-me do segredo. Nada feito, essa seria a sua última arma de arremesso ao futuro, caso o nosso trabalho de investigação não conseguisse dialogar com o poder local e com a justiça.

Esperei assim muito tempo até fazer parte dos mistérios do Colmeal. Chegara a hora. Aires não mudou. Tem o mesmo olhar assombrado. Chama o silêncio, fica muito tempo a ver desfilar, na câmara escura das recordações, as sombras da sua aldeia que o antigo regime quis tirar do mapa da história Portuguesa, e Abril ignorou.

A boca amarra-se vê-se o ódio pela força que os músculos dos maxilares exercem. Raios vermelhos abrasam-lhe o olhar como se tivesse visto o sangue dos seus mortos, como nuvens espessas a submergir o Colmeal. Lembra-se da sentença do tribunal que transformou uma aldeia que vinha nos cronicões numa quinta privada. Evoca o poeta Amadeu que nunca se conformou por não ter dado cabo do canastro ao juiz, e trauteou-a. Acompanho-o:

Adeus lugar de Figueira
Onde canta a perdiz
A maior pena que eu tenho foi de não matar o juiz
O tempo passa e arrasta a mudança. Com a República entrou o enguiço naquelas paragens. A burguesia endinheirada apodera-se dos domínios da nobreza.Os condes de Belmonte, com medo das vindictas dos republicanos, vendem o foro do Colmeal. A Igreja também abana. Os seus bens são arrolados pelo estado. A Igreja paroquial do Colmeal também. Na Beira, os novos proprietários mantinham direitos que remontavam ao tempo das sesmarias. Lavraram-se á pressa as escrituras, delimitaram-se terrenos nos olhos da gente do Colmeal que habituada à velha servidão, continuava a pagar agora aos feitores dos novos senhorios.

Aires atira o olhar para a Igreja, um escombro; já não se vê o cemitério, nem sobre os ossos do pai pode lamentar-se. Ainda há 12 anos, as sepulturas dos seus antepassados se viam. Estavam abertas, um silvedo encorpado dificultava a entrada, crânios e partes de esqueletos como se cumprissem um castigo eram assento para as cabras que ali iam despejar a tripa. Um incêndio recente acabou por atear até os antepassados de Aires. O homem faz um "flash-back" e encalha nas memórias da mãe.

Nos anos quarenta do século XX, um novo feitor anunciava a desgraça. Parecia um gato a brincar com as suas presas. Um dia tomou a sua mãe de surpresa, disse-lhe que afinal não era foro mas que pagavam renda. Graciosa da Cruz passou a andar endividada. A colheita mal dava para pagar ao arrendatário: eram impostos da burra, dos cães e da carroça dos machos, mais a côngrua ao padre, um alqueire de trigo.

Começa a construção de uma tramóia macabra. Rosa Cunha e Silva queria-se dona de todo o Colmeal, e foi ao seu advogado, um opositor do regime com passado, um socialista que meditava em "part-time" nos dramas dos pobres, Manuel Vilhena, que de um sopro baralhou as leis e transformou a povoação anterior à nacionalidade numa quinta privada. O pleito correu durante 3 anos no Tribunal de Figueira de Castelo Rodrigo, sede do concelho. Aires tinha 9 anos quando a sentença foi lavrada.Os homens e os rapazes subiram aos montes para evitar desgraças, enquanto uma força da 25 soldados da Guarda Nacional Republicana, armada até aos dentes, vinha executar o mandado de despejo. Escondido num penedo, Aires via a Guarda às coronhadas a escavacar a porta de sua casa para retirar os bens e encher as carroças.
autor: Felícia Cabrita in jornal Ecos da Marofa


Perspectivas de regresso

Da casa onde Jacinta Carvalho nasceu e viveu até aos 21 anos já só resta parte das paredes exteriores. A aldeia fantasma do Colmeal é toda ela ruína, da igreja que já perdeu o telhado àquele que terá sido um imponente solar, no extremo oposto. «Esta não é a minha terra», reage emocionada a idosa, que, no último sábado, visitou pela primeira vez a aldeia desde os acontecimentos daquela manhã de Julho de 1957 - em que os habitantes foram despejados por uma ordem judicial, num caso único nos anais da justiça portuguesa.

Jacinta Carvalho vive a uns 13 quilómetros do Colmeal, em Castelo Rodrigo, e conseguiu estar 52 anos sem voltar à sua terra natal. Por opção. A sua família, tal como as restantes 12 que aqui moravam em regime de foro, perdeu tudo. Confessa que lhe custa recordar o quanto o pai chorou naquele dia, em que a família se mudou para Castelo Rodrigo, para a casa onde morava já uma irmã, que entretanto ali tinha casado. Foi aqui que recomeçou a sua vida, que também casou e teve três filhos. Começa por responder com um «não sei porquê» quando questionada acerca dos motivos que a levaram a aceitar o convite de O INTERIOR para voltar à aldeia. E emociona-se novamente. Diz que não foi pela recente decisão da Assembleia Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo de criar um grupo de trabalho para averiguar do potencial turístico do Colmeal – baseado na sua história, nas potencialidades ambientais e ainda no facto de por aqui ter morado a mãe de Pedro Álvares Cabral – e nem tão pouco pela possibilidade de vir a recuperar a casa da família. «Para que a quero agora?», questiona.

Jacinta Carvalho não tem planos para a casa. «Não vim cá antes porque tinha medo de me sentir mal», confessa. Veio agora porque, a cada vez que respondia com um “não” aos sucessivos convites de familiares e outros ex-moradores, crescia a curiosidade em saber como estaria a sua pequena aldeia: «Olhe, já não aguentava mais», desabafa.

Jacinta Carvalho recorda-se bem do dia do despejo. Conta que foi a mãe que na véspera, numa ida a Figueira Castelo Rodrigo, soube que na manhã seguinte iriam ser despejados. Tudo porque o feitor subarrendatário não pagava a renda há quatro anos àquela que era, de acordo com uma escritura de 1912, a nova e legítima proprietária dos terrenos dos herdeiros dos condes de Belmonte. A mãe da então jovem Jacinta Carvalho apressou-se a regressar à terra para avisar os aldeões. Na altura, Jacinta Carvalho era já a única de seis irmãos a residir ali com os pais. «Tínhamos uma boa seara nesse ano e então passámos a noite toda a tentar levar para Castelo Rodrigo o máximo que conseguíamos», recorda. Com o amanhecer veio o inevitável: 25 praças e três oficiais da GNR irromperam pela aldeia, entraram nas casas, retiraram os pertences dos moradores e colocaram-nos nas proximidades da Quinta Serra, a mais de um quilómetro. «Os nossos bens estavam misturados com os dos outros», conta. A família pegou nos seus pertences e rumou para Castelo Rodrigo. Outras permaneceram por ali até encontrarem um tecto.

«Um erro judicial, matricial e histórico»

Foi o caso de Aires Cruz, outro ex-habitante, que há 17 anos tenta perceber o que diz ter sido «um erro judicial, matricial e histórico». Tinha na altura 9 anos. «Foi muito complicado», lembra. A mãe era uma viúva com cinco filhos para sustentar. A família acabou por fixar-se em Freixeda do Torrão. Agora, Aires Cruz mostra-se algo céptico em relação às recém-anunciadas intenções da autarquia, mas diz que são «boas notícias» e que «já é tempo de ser feita justiça». O antigo residente do Colmeal tem mesmo uma monografia para publicar no próximo ano, onde diz provar que se tratou «de uma apropriação de terras indevida». O Colmeal é sede de freguesia e está provado documentalmente que é paróquia, desde 1940, refere Aires Cruz. «O documento nunca foi apresentado em tribunal, que considerou erradamente o Colmeal como quinta», sustenta. O resultado das suas investigações já o levou mesmo a escrever ao Presidente da República, Procurador-Geral da República e presidente do Supremo Tribunal de Justiça, entre outros. Aires Cruz diz esperar agora que a autarquia não se fique pelas intenções.
Autor: Sandra Invêncio, in jornal Interior

1 comentário:

  1. A expulsão dos moradores da paróquia do Colmeal foi uma Burla iniciada em 4-2-1771 em que o conservador predial mentiu quando escreveu que tinha recebido duas cópias de duas escrituras de 1791 e outra de 1875, isto é falso estas escrituras não estavam feitas, mas em certidão de 1954 para o processo de expulsão esta data foi falsificada para 1881 tornando o teor verdadeiro e com isso enganam o Juiz que fez o julgamento, este processo num pais de Direitos já estava anulado,

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