O Zé da Pipa

O Zé da Pipa era um homem danado a virar copos. Atarracado e duro como moita de carrascos, gabava-se de não ter medo de almas penadas. O vinho tornava-o avinagrado por dentro, fazendo a vida negra à mulher. O filho mais velho, o Meio Quartilho, como lhe chamavam por causa do pai, chegou a atirar-se a ele para defender a integridade física da mãe que ameaçava sair de casa de vez para que o homem se emendasse, embora tudo se resumisse sempre a lérias. Ele continuava a beber e o bafo saía-lhe da boca acre como baga de zimbro. No dia de aniversário, em vez de velinhas, exigia copos acesos.
Numa tarde de fins de Outubro, sentiu-se mal. Inchou como um touro, e correram com ele para o hospital concelhio. Como ali não havia aparelhos à altura, foi preciso levá-lo no carro dos bombeiros para a Guarda. Pelo caminho ia perguntando se lá também davam vinho e rogava pelas alminhas que tivessem cuidado com as luas e a trovoada, porque lhe podiam turvar o vinhinho. Regressou ao fim de três dias fresco e rijo como agrião e cheio de saudades da pipa.

Num dia de feira, foi com a mulher ao Centro de Saúde buscar as análises. Ela entrou primeiro no consultório e pediu ao médico que lhe proibisse o vinho. Porém, quando ele se apercebeu que o queriam tramar, ameaçou virar tudo do avesso, e o médico viu-se obrigado a dizer que podia beber à vontade.

Na terça-feira de Entrudo, cismou que queria comer grelos com o palaio regados com azeite do novo. Deitou um gortcho de azeite por cima dos grelos e, depois de os provar, resmungou:

- O azeite está rançoso como tu, sua reconca!

- O vinho é que tu não achas rançoso, alma do diabo!

Como ele insistia, a mulher foi buscar uma garrafa de azeite velho, o que levou o filho a dizer que lhe trouxesse mas é uma de vinho, que ele via melhor a diferença. O Zé da Pipa é que não gostou nada da graça do filho; instintivamente, deu-lhe uma catcheirada, atirou com o palaio à cabeça da mulher e virou tudo de pantanas, indo, religiosamente, refugiar-se ao lado da pipa.

No dia de Páscoa, como tinha andado a beijar a cruz em casa dos sete irmãos, passou por nova crise. Ao fim da manhã, quando chegou a vez de o padre tirar o folar em casa dele, pensou que era já para a extrema-unção e fechou-lhe a porta. A crise agravou-se e parecia que havia de rebentar. Inchava cada vez mais, e o Natividade aconselhou-o a levá-lo a Porto da Carne.À chegada, a mulher contou à bruxa o que se passava e untou-lhe bem as mãos com a condição de lhe meter muito medo com o vinho. O Zé da Pipa voltou de lá com a proibição absoluta de beber, com umas ervas secas para desinchar e um frasquinho com um novelo de pêlo de rabo de mula que devia guardar na algibeira do casaco. Se o deitasse fora, ele aparecia dentro da pipa, e o vinho avinagrava.

Passou uma semana sem beber, mas com um peso danado na consciência. Numa noite fria em que a lua nova passava por cima do telhado da casa, depois de tomar o chá e de calculadamente rodar o frasquinho na ponta dos dedos indecisos, levantou-se da mesa vagaroso e dirigiu-se para o horto. A mulher, que o andava a espiar, olhou para o filho e fez-lhe sinal com a cabeça. No momento em que o pai aventou o frasco para o ribeiro, o rapaz meteu um novelo de rabo de burra e cinco litros de vinagre na pipa. Livre do frasco, de compromissos e de bruxarias, o ti Zé esfregou as mãos, arregalou os olhos e, sentindo as narinas e os beiços mais reconfortados com o cheiro do tintol, foi direito à pipa para lhe sorver a alma. Mal levou aos lábios o primeiro copo, o novelo veio-lhe à boca e o vinho soube-lhe a vinagre. Atirou um berro que alvoroçou a vizinhança e sentiu-se perdido. Levaram-no numa padiola para casa e deitaram-no em cima da arca da entrada da casa, ficando a gemer durante duas horas.

Foi remédio santo. Nessa noite, convencido que há coisas estranhas que o homem não pode entender, caiu de bruços à frente da mulher e, voltado para a imagem de Na Senhora dos Remédios, jurou pela alma do pai que nunca mais voltava a provar o vinho.

autor: Carlos A. Vicente in Crónicas do Nosso Povo

[relevância: Local, regional]

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