O concelho de Figueira de Castelo Rodrigo

Enquadramento geográfico e administrativo

Figueira de Castelo Rodrigo é uma vila portuguesa pertencente ao Distrito da Guarda, região Centro e subregião da Beira Interior Norte, com cerca de 2 200 habitantes.


 

PRÉ-HISTÓRIA

Os primeiros humanos de que existem provas irrefutáveis de terem ocupado uma parcela do nosso território pertenceram na realidade um tipo evoluído de hominídeo designado de «homo sapiens sapiens» ou «homem moderno» que de há 37 mil e 10 mil anos deixou por toda a Europa Ocidental sinais claros da sua cultura e manifestações artísticas. Eles viveram junto ao Côa no lugar da Faia, freguesia de Vale de Afonsinho, e tal como em todo o vale a montante e a juzante deste rio, deixaram marcas da sua presença sob a forma de arte rupestre, figuras gravadas sobre xisto representando animais, tais como cavalos e bovídeos. Tratando-se de pequenas comunidades de caçadores-colectores, esta forma primitiva de arte pode traduzir, mais do que um simples gosto pela arte, uma espécie de ritual de magia propiciatória, isto é, destinado a garantir o seu êxito nas caçadas. O local foi classificado em 1997 monumento nacional pelo IPPAR e considerado património mundial da Unesco, desde 1998. Também no Cerro do Castelão, situado no limite da freguesia de Escalhão, na fronteira com o de Vilar de Amargo, encontraram-se vestígios de ocupação da Pré-história recente (de há 10 mil a 6 mil anos). [1]
Antes destas pesquisas já se haviam recolhido machados de pedra datados do Neolítico no lugar da Faia do Guerra, freguesia de Quintã do Pêro Martins.


PROTO-HISTÓRIA

Vestígios

Mais numerosos são os locais que foram habitados por povos da Proto-História ou Idade dos Metais (de há 4.500 anos até à época romana). Os vestígios da Idade do Cobre têm sido identificados em alguns povoados de altura típicos da cultura castreja que existiram na região provavelmente pelos meados do 4.º milénio. Outros achados confirmam a existência de povoados que já dominavam a metalurgia do bronze entre o 3.º milénio e o século VIII a.C. e da Idade do Ferro, entre aquele século e a época romana.
Assim, surgem referências arqueológicas relativas ao local dos Ataúdes, a cerca de 2,7 quilómetros para Este de Figueira de Castelo Rodrigo, onde foi recolhida uma interessante estátua-menir da Idade do Bronze, a que se atribuiu uma datação de finais do segundo quartel do II milénio a. C. [2], ao lugar de Santo André, situado na freguesia de Almofala, que é apontado como o povoado indígena da Idade do Ferro mais importante da região e onde terá existido um santuário proto-histórico a que podem estar associados os berrões que lá se avistam, ao sítio da serra da Marofa, com vestígios há muito assinalados que confirmam a existência de um castro, de Castelo Rodrigo (embora as provas sejam escassas e pouco convincentes), ao local da Palumbeira, na freguesia das Cinco Vilas, provavelmente um povoado mineiro e onde foram recolhidos materiais cerâmicos da Idade do Cobre e da Idade do Ferro, ao local designado de Castelo em Algodres, também com vestígios da Idade do Cobre, ao sítio de Santa Bárbara, na mesma freguesia, com sinais de ocupação na Idade do Ferro, tal como o sítio do Castelo em Escalhão, de que só resta o topónimo, e o local designado de Fortaleza, na freguesia de Escarigo, entre a ribeira com o mesmo nome e a de Tourões. [3]


Idade do cobre (c. 3100 a.C. - c. 2000 a.C.)
Segundo as pesquisas arqueológicas realizadas na região, a que nos referimos, são deste período alguns povoados que foram identificados no sítio da Palumbeira (freguesia de Cinco Vilas) e no lugar chamado de Castelo, na freguesia de Algodres, ali talvez um povoado mineiro, e aqui um povoado castrejo de vocação agro-pastoril.
Estas comunidades do Calcolítico eram comunidades sedentárias que viviam da agricultura e da criação de gado, já utilizavam o arado e o carro de bois, usando os animais para a lavoura e tracção e deles também aproveitavam, não só a carne, mas também o leite e a lã. Já separavam os ofícios do trabalho da terra e começavam a estabelecer uma hierarquização social baseada na divisão do trabalho. A importância da metalurgia do cobre e a necessidade de controlar os territórios das jazidas de minério, como pode ter sucedido no caso da Palumbeira, e defender os direitos de propriedade, contribuiu para a diferenciação dessas comunidades, acentuando as regionalidades e dando origem a comportamentos guerreiros, tomados sob a direcção de um chefe. O arco e a flecha constituíam o armamento mais comum dessa época e aquelas comunidades já começavam estabelecer-se em locais elevados de encosta, próximos dos vales mais férteis, de rios ou ribeiras onde construíam cinturas de muralhas e bastiões de planta circular, de influência mediterrânica, para se protegerem de eventuais ataques de outras comunidades.
Estes agicultores-guerreiros deviam praticar o mesmo tipo de culto herdado dos finais do Neolítico. centrado na grande deusa-mãe e associada à fertilidade dos campos, enterrando os seus mortos em necrópoles colectivas, acompanhados de artefactos pessoais como armas e objectos cerâmicos.
(c. 2000 a. C - c. 800 a. C)


Idade do bronze
A descoberta da estátua-menir da Idade do bronze na quinta dos Ataúdes, em Figueira de Castelo Rodrigo, veio fazer alguma luz para a resolução do problema que os arqueólogos e historiadores vinham levantando àcerca de um misterioso hiato na ocupação humana desta região, entre as comunidades agro-metalúrgicas da Idade do cobre e as chamadas «democracias guerreiras» da Idade do ferro.
A Idade do bronze é o período de expansão dos centros proto-urbanos das comunidades autónomas que já dominavam a metalurgia daquele metal que, como se sabe, se obtém pela mistura de cobre, mais abundante a Sul do Tejo, e estanho, predominante no Norte de Portugal. Este novo período não provocou grandes rupturas tecnológicas em relação à Idade do cobre mas assistiu-se nele a uma larga diversificação dos instrumentos de metal, sobretudo dos instrumentos de guerra, tais como pontas de lanças, machados, espadas, punhais e braceletes.
Operaram-se mudanças significativas nos comportamentos sociais. Como referem alguns autores [4], «os povoados de altura com poderosas cintas de muralhas e casas de estrutura circular dominam pequenos povoados abertos que se dispersam nas planuras e constituem unidades agrícolas.» Trata-se já de uma prática de dominação política exercida sobre outras comunidades da região por castas de guerreiros que se estabelecem nos principais centros sob as ordens de um líder consagrado.
Ao mesmo tempo, ligado à tendência cada vez mais generalizada para a heroicização desses líderes, mudavam também as práticas funerárias no decurso da Idade do Bronze. Os sepulcros colectivos dão lugar a cistas individuais, algumas delas cobertas com lajes insculturadas ou acompanhadas de estátuas-menir.
Foi neste ambiente em que, ainda segundo os autores do mencionado roteiro, «o poder [se] encontra cada vez mais concentrado nas mãos de grupos restritos consttituídos em hierarquias de linhagem familiar que virão a converter-se em estratos sociais de diferente riqueza» em que «a manutenção da ordem social passa a ser feita através das armas e do mito/heroicização dos antepassados e dos grandes chefes guerreiros» em que «o mundo de Homero com os seus mitos e com os seus "heróis com espadas de bronze", constitui poventura o mais expressivo exemplo narrativo desta realidade histórica», enfim foi neste ambiente de heróis feitos deuses que viveu o nosso «chefe-guerreiro dos Ataúdes». A circunstância de a respectiva estátua-menir ter sido encontrada num campo isolado e afastado dos possíveis habitats que têm sido sugeridos para as épocas anterior e posterior, não é inédito em Portugal, uma vez que, de Norte a Sul, se têm registados fenómenos idênticos relativos à Idade do Bronze, onde essas estátuas-menir são interpretadas como «espíritos titulares dos grupos, como divindades ligadas aos cultos da fecundidade ou como personagens historicizadas». [5]
É possível que nesta parte de Ribacôa, cujas características naturais dominantes são os solos pobres, em algumas partes argilosos, e a aridez do clima, a predominância económica fosse já a pecuária, pela exploração e gestão de recursos ganadeiros sobretudo do gado transumante, ao invés da agricultura que pela mesma época dominava em outras regiões portuguesas.

Idade do ferro (800 a.C. - época romana)
A partir dos meados do seculo VIII a.C., ao longo do maciço galaico começam a formigar aguerridos bandos de aventureiros, famílias, comunidades inteiras, em demanda de terras mais seguras e prósperas. É o conhecido fenómeno migratório atribuído aos celtas, de influência centro-europeia, que se estendeu à Península Ibérica por via do Danúbio. Alguns desses povos errantes transpuseram o Douro, em vagas sucessivas, e deambularam por terras de Ribacôa até se fixarem nas melhores colinas que encontraram, onde ergueram povoados fortificados, ou até conquistarem castros já edificados e ocupados.



Ao contrário do que por vezes se pensa, estes novos habitantes não vieram alterar a estrutura geo-política que encontraram na região, antes a adoptaram e ampliaram, servindo-lhes, por conveniência da sua superioridade técnica militar sobre a população autóctene, o mesmo sistema de dominação político-social que caracterizou todo o período da civilização dita castreja, sistema esse alicerçado em linhagens familiares estabelecidas em povoados proto-urbanos com funções centrais sobre um mundo rural que expontaneamente aceitava colocar-se à sua mercê.
A tendência para a afirmação política das elites guerreiras sobre as comunidades pastoris e a sua actividade de transumância ganadeira, que já se esboçara na Idade do cobre e se fizera tradição na Idade do bronze, era retomada vantajosamente e em larga escala pelos novos protagonistas, dentro da mesma lógica de que a posse de armas mais eficazes era a mais poderosa condição para essa afirmação. As próprias elites já instituídas durante a Idade do Bronze, uma vez na posse de armas superiores e dos segredos da metalurgia do ferro, puderam ver reforçado o seu poder com a chegada dos «invasores».
Também podemos dizer relativamente à base económica desta «civilização castreja», tendencialmente associada à Idade ferro, que ela era a pecuária, ao contrário da predominância agrícola verificada em outras regiões, alteração essa que já sugerimos ter ocorrida em qualquer momento da Idade do bronze. Alguns historiadores dedicados à História de Ribacôa e particularmente da região de Figueira de Castelo Rodrigo, para épocas mais recentes, têm chegado às mesmas conclusões, reconhecendo a existência de uma intensa actividade pastoril, cujos contornos associados ao contexto geomorfológico destas mesmas regiões denunciam o seu carácter ancestral. António M. Balcão Vicente, por exemplo, começa por concluir da documentação do cartório do mosteiro de Santa Maria de Aguiar que a região já era no século XII «essencialmente produtora de centeio, ocupando a vinha um papel importante nas encostas das ribeiras e nos terrenos mais profundos e argilosos de Castelo Rodrigo», mas depois disso não hesita em afirmar que «no entanto a grande riqueza assentava na pecuária, com rebanhos de ovelhas e cabras percorrendo rotas de transumância ancestrais e favorecendo, pelas suas características periféricas, a perpetuação de costumes comunitários que apenas encontram comparação nas terras de Sayago, de Aliste e em Trás-os-Montes Oriental.» Refrindo-se, relativamente à mesma região, a uma «manutenção de comunidades autóctenes até ao século XII, altura em que se intensificam as acções de povoamento de Fernando II», Balcão Vicente descreve essas mesmas comunidades como sendo «comunidades cuja vida se alicerçava na pecuária e onde as elites locais emergiam em função do prestígio proveniente da posse de um maior número de cabeças de gado e da capacidade para as defender contra os perigos que se apresentavam ao longo dos trajectos de transumância». Reportando-se a esta prática de autonomia ancestral, refere o mesmo historiador que «a romanização apenas levemente [a] terá influenciado» acrescentado ainda que «boa parte dos locais fortificados devem assentar sobre antigos castros das Idades do Bronze e Ferro que, atravessando os períodos romano e visigótico, terão encontrado, a partir do século V, motivos para acentuar as suas tendências de autonomia.» [6]
Pretendemos com tudo isto essencialmente dizer que as bases da realidade política e socio-económica das populações dos castros da Idade do Ferro, cujo modus vivendi se tornaram pela primeira vez conhecidos a partir das fontes documentais romanas, não foram uma novidade da Idade do Ferro e, por conseguinte, também não surgiram como uma consequência da «imigração céltica».
Contudo, admitindo que não tenha existido uma verdadeira ruptura com o modelo de acção política e económica tradicional, é inegável que os povos recém-chegados com as suas armas de qualidade superior acabaram por produzir alterações significativas no comportamento social, cultural e religioso, assim na Galécia como nesta parte de Ribacôa.
Desde logo deve ter havido alterações no modus operandi relativamente à exploração dos recursos económicos, isto é das terras e do gado. Na Idade do ferro tudo passa a ser explorado pela via da guerra, de tal como modo que a guerra, é ela própria - através da generalização da prática, instituída e tacitamente aceite por todos, de saques e pilhagens - entendida como a principal actividade económica, e são as armas de ferro, como as de bronze o foram na sua época, que agora se afirmam, não só enquanto símbolos incontestáveis do prestígio social dos guerreiros, mas também como meios mais eficazes do que nunca para exercer o poder. E as novas ou renovadas chefaturas castrejas intensificam o seu controlo sobre a actividade ganadeira transumante, da qual depende a satisfação da maior parte das necessidades básicas da população, em detrimento da agricultura. Os «historiadores» romanos confirmam esta lógica económico-social pelos relatos que nos deixaram dos costumes dos guerreiros galaicos e lusitanos. A dieta alimentar das populações castrejas da Idade do Ferro é definida cada vez mais em função de produtos de origem animal, assim como uma grande parte das necessidades materiais relacionadas com o vestuário e até com a utensilagem militar. O pão de bolota e a cerveja também dela obtida são alternativas alimentares aos cereais e vinho que estes povos passam a dispensar. A lã e o leite passam a ser produtos primários, em contraste com o linho e os cereais passados pela longínqua revolução neolítica aos povos da Idade do cobre. O couro é imprescindível no fabrico de escudos, capacetes, baínhas e outros equipamentos militares.
A omnipresença dos animais na satisfação das necessidades mais básicas das comunidades castrejas da Idade do Ferro pode estar relacionada com algumas alterações produzidas na mesma época ao nível das crenças religiosas. Ao tradicional culto dedicado por uma variedade de tribos da Lusitânia a mulltiplas divindades relacionadas com as forças astrais e naturais, às quais sacrificavam animais, observando as suas entranhas em rituais de adivinhação, os pastores-guerreiros das tribos galaicas e do Nordeste de Ribacôa contrapunham uma adoração dos próprios animais, tais como porcos selvagens e touros, que surgem representados nos célebres berrões dos territórios duriense e do Águeda nima área que se estende desde Trás-os-Montes até Ávila e Salamanca. Trata-se de esculturas em granito que atribui aos animais aí representados um valor tutelar sobre as comunidades que os elegeram.
Também se verificou uma evolução nas práticas funerárias cuja generalização pode estar relacionada com as comunidades recém-instaladas de influência cultural centro-europeia. Existem provas em outras regiões de que a incineração dos mortos já era praticada da Idade do Bronze, em alternativa à prática de inumação, mas foi, com efeito, no decurso da Idade do Ferro que ela se generalizou. Quanto à região de Figueira de Castelo Rodrigo, não existem quaiquer provas que confirmem ou infirmem essa evolução, pelo que vamos tomá-la em conta apenas como uma possibilidade.
Os locais de Caliábria, Marofa, Castelo Rodrigo, Santo André (Almofala), Fortaleza (foz da ribeira de Tourões-Escarigo), Santa Bárbara (Algodres), Rodo do Castelão (Escalhão), Castelo (Escalhão) e Palumbeira (Cinco Vilas), integram-se arqueologicamente neste quadro que acabamos de traçar da Idade do Ferro.



DOMÍNIO ROMANO

A invasão romana na Península Ibérica começou com a segunda Guerra Púnica (218 a. C. - 201 a. C.) sob o comando de Cneio Cornélio Cipião, a quem coube a responsabilidade de afastar a influência dos cartagineses neste território cobiçado pelos romanos. Os cartagineses há muito que percorriam a Hispânia, fazendo comércio com os indígenas ou explorando directamente as minas de ouro, prata, cobre, ferro e estanho e recrutando muitos deles para servirem nas guerras contra os romanos. A desejada, e conseguida, derrota dos castagineses não garantiu a ocupação pacífica dos romanos na Península Ibérica, uma vez que no ano 194 a. C. começou a conhecida epopeia de resistência indígena dos lusitanos que tornou célebres os feitos militares de Viriato nas terras da Andaluzia.

Em 150 a. C., Galba, então pretor da Lusitânia, viu-se, sob determinação do senado, na obrigação de ajustar tréguas com os temíveis lusitanos, mas as hostilidades continuaram, forçando o mesmo senado a enviar para a Península o cônsul Décimo Júnio Bruto com a incumbência de esmagar a insurrecção. Bruto permaneceu em Olissipo (Lisboa) durante o tempo necessário para fortalecer as defesas da cidade e preparar um numeroso exército que, sob o seu comando partiu em direcção ao Norte, assentando acampamento em Móron, próximo de Santarém, que foi o lugar por ele escolhido para ser o seu centro de operações. Foi daqui que Júnio Bruto lançou uma tremenda investida militar sobre o território peninsular até ao rio Lima, deixando atrás de si um extraordinário rasto de destruição. Contudo, faltava ainda atacar Numância, o coração da Celtibéria, cidade a partir da qual os castros do Noroeste eram instigados à resistência armada.


Títo Lívio (59 a.C. - 19 d.C) definiu assim o carácter do homem hispânico:
«Ágil, belicoso, irrequieto. A Hispânia é distinta da Itálica, mais disposta para a guerra por causa do agreste terreno e do génio dos homens» [7]
É então que Júlio César, talvez o maior génio militar romano do seu tempo, a quem foi confiada a responsabilidade de resolver o impasse, acomete sobre a capital da Celtibéria, ganhando-a, mas sendo depois, ingloriamente, abrigado a assisitir ao seu dramático fim, consumida pelas chamas, que foram ateadas não pelos valorosos legionários, mas pelos próprios orgulhosos defensores. Com a pacificação dos cântabros e dos ástures, já no tempo de Octávio César Augusto, nos primórdios do período imperial, consumou-se a Pax Romana que abriu caminho à romanização.
A partir do ano 313, com o édito de Milão promulgado por Constantino, a Hispânia começou a encher-se de paróquias cristãs.
Os locais tradicionalmente sublinhados como os mais relevantes e incontestáveis do domínio romano em Ribacôa são a extinta Caliábria, os sítios de Santo André, da Serra da Marofa e da Torre de Aguiar. As pesquisas arqueológicas mais recentes têm assinalado outros locais talvez menos importantes, mas de incontestável romanização, tal como a zona dos Pedregais, localizada na freguesia de Vilar Torpim, a cerca de três quilómetros para Sudoeste, onde o arqueólogo Andrade Maia localizou abundantes indícios que podem estar associados à existência de uma importante villae romana, provavelmente do séc. I ao séc. V, como restos de estruturas arquitectónicos, tégulas e artefactos de metal típicos da época romana. Também na zona do Cabeço da prata, na freguesia de Almofala, o mesmo arqueólogo encontrou vestígios de ocupação romana que sugerem a existência de uma villae, atendendo ao facto de se tratar de uma zona fértil para a exploração agrícola. Na zona da quinta da Póvoa, próxima do rio Côa, no limite sudoeste da freguesia de Quintã de Pêro Martins, tal como a cerca meia dúzia de quilómetros para ocidente, no sítio da Casa do Florindo, e ainda na zona conhecida por Faia do Guerra, mais para Sul, Andrade Maia assinalou a existência de numerosos vestígios de tegula romana, mas ele admite que esses vestígios foram deixados por povoados que nessa época se dedicavam à exploração mineira, atendendo ao débil potencial agrícola da região em contraste com uma elevada predominância de quartzo que sugere a exploração de ouro de aluvião. No Olival de São Paulo e junto ao rio Côa, em Farelos, na mesma freguesia de Quintã do Pero Martins, há notícias de cerâmica romana, tal como um pouco mais a Sul , em Telhões (Vale da Cal). Também se identificaram duas estações romanas na parte Norte da freguesia de Escalhão, uma na Quinta da Pedriga, a sul de Barca d’Alva, onde se acharam algumas moedas e outra no Vale Tedão, onde se detectaram cerâmicas e material de construção. Os vestígios relativos ao local de Nossa Senhora da Marofa (uma inscrição romana) e a Castelo Rodrigo (moedas, mosaicos, materiais de construção) são escassos, e no último caso são considerados de proveniência duvidosa. No local do Convento de Santa Maria de Aguiar achou-se uma ara. Na zona meridional do concelho de Figueira de Castelo Rodrigo o sítio de São Marcos de Palumbeira, na freguesia de Cinco Vilas, é também digno de interesse, por se ter assinalado a existência de cerâmica romana. [8]
Mas os achados mais extraordinários occorreram naquele local da Torre de Aguiar, também designado por Torre dos Frades ou Casarão da Torre, na freguesia de Almofala, onde foram descobertos, em escavações aí efectuadas, importantes vestígios de ocupação romana, designadamente, em 1997, uma ara dedicada à divindade suprema do panteão romano, Júpiter que, a ter sido construída no próprio local, serviu para o assinalar como a «civitas cobelcorum», isto é a cidade dos cobelcos, um povo cuja existência era conhecida, mas cuja localização era um mistério. [9]

Esta descoberta veio suscitar a necessidade de uma revisão à clássica concepção da estrutura populacional desta região romanizada da província da Lusitânia e enquadrada no conventus emeritensis.

Podemos, grosso modo, traçar assim o quadro populacional desta região durante o domínio romano em Ribacôa: Para sul da Marofa dominavam os lancienses transcudani. Para Norte, os Cobelci, com capital na referida Civitas Cobelcorum, eventualmente estendendo o seu domínio sobre os Caliabrienses até ao rio Douro. Na margem oposta do rio Côa, a Ocidente, impunham-se os Aravi, cuja capital era Civitas Aravorum (Marialva) e a Oriente do rio Águeda, estendiam-se os vettones. Os Mirobrigenses seriam certamente aparentados aos vettones.


A Região na Pré-história, Proto-história e Antiguidade



DOMÍNIO VISIGÓTICO

Por volta do ano de 403, numa altura em que o grandioso império romano dava sinais de fraqueza, motivada pela instabilidade política e anarquia militar, e descurava o sistema defensivo das suas fronteiras, numerosos bandos armados de povos que abandonavam as suas terras sob a ameaça da terrível invasão dos hunos, penetram na província da Lusitânia. Esses invasores foram os alanos, os vândalos e os suevos. Os alanos provinham do Cáucaso, os vândalos da Germânia de influência escandinava e os suevos, igualmente germânicos, eram aparentados aos anglos e saxões que se haviam fixado na Britânia. Pressionados por alanos e vândalos os suevos deslocam-se para Noroeste semeando a destruição entre as pacíficas paróquias cristãs hispano-romanas até se estabalecerem na Galécia, onde fundaram um reino com capital em Bracara Augusta (Braga). Até ao ano de 476, o reino suevo alargou os seus domínios muito para sul do Douro, por via da guerra e destruição, apesar de terem abandonado o arianismo e aderido ao cristianismo. A simpatia demostrada pelo cronista e teólogo bracarense Paulo Orósio (385 - c. 420) pelos suevos na célebre observação de que «depressa trocaram a espada pelo arado e se tornaram amigos» contrasta com o repúdio revelado contra eles pelo cronista Idácio, que foi bispo de Chaves entre 427 e 460 e também viveu esses tempos difíceis, descrevendo assim uma das acostumadas acções dos suevos nos territórios vizinhos:


«Mas depois da sua vinda o rei dos suevos, Rechiário com numerosa tropa dos seus invade as regiões da província Tarraconense, fazendo ali grande motim e levando-se abundantes cativos a Galaecia».
[10]
Os visigodos, foram outro povo de origem germânica cujo rei, Ataúlfo, celebrou em 418 um tratado com o imperador Constâncio, pelo qual, sob condição de defenderem a Aquitânia, os visigodos se fixariam na Gália na qualidade de federados do império. Em 476, Eurico aproveitou essa relação de confiança com o império para fundar um reino visigodo com a capital em Toulouse, reino esse que integrava grande parte da Gália e da Hispãnia, dando início à dinastia visigótica de Toulouse. Porém efémera, pois, em 507 o mesmo Eurico viu o seu exército ser derrotado na batalha de Vouillé pelos francos de Clóvis. Resignados, os visigodos passaram à Hispânia, estabelecendo a sua nova capital em Toledo, de onde conseguiram conquistar todo o território, expulsando os alanos e os vândalos, que dominavam na actual Andaluzia, para o Norte de África, e em 585 Leovigildo derrotou os suevos e prendeu o seu rei, Andeca, pondo fim a cerca de século e meio de terror entre a população peninsular. Os suevos manteriam durante alguns anos um governo de relativa autonomia, mas acabaram por se fundir com o povo visigótico.
Se nos limitarmos a avaliar pela quase absoluta inexistência de topónimos de raiz hispano-visigótica credíveis ou de vestígios materiais e arquitectónicos que se vêem noutras regiões de influência visigótica, diríamos simplesmente que esta foi aqui bastante ténue, se não mesmo nula, e daí até mesmo entender este povo belicoso como um povo eternamente bárbaro, inculto e decadente.
Não devemos contudo esquecer que após a conversão de Recaredo, em 589, no terceiro concílio de Toledo, abriu-se para a Hispânia goda uma era de progresso, de ordem pública, de promoção da moral cristã e de prosperidade material, sob o signo do Codex Visigotorum que se guardou durante séculos como um monumento jurídico fundado no direito romano e nos modelos de virtude católicos.

No extremo norte da região de Ribacôa, próximo da localidade de Almendra, freguesia do concelho de Vila Nova de Foz Cõa, mas que foi noutros tempos um lugar do termo de Castelo Rodrigo, ergue-se o monte Calavre, onde no século VII existia um importante povoado, Caliábria, que começando por ser um castro romanizado, transformou-se, a par de Miróbriga (Ciudad Rodrigo), num dos mais importante pólos urbanos de Ribacôa, se não mesmo o mais importante, como se pode depreender do facto de ter sido aí que Suíntila, o décimo quinto rei godo de Toldedo fundou, em 621 a «dioecesis caliabriensis» da qual se conhecem os nomes de pelo menos quatro bispos, que marcaram a sua presença nos concílios episcopais: Servus Dei (IV concíclio de Toledo, 633) Celedónio (VIII concílio de Toledo, 653); Aloário (concílio de Mérida, 666); Ervígio (concílio de Toledo em 688). Jorge de Alarcão (Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia – II, Revista Portuguesa de Arqueologia. Volume 7, número 2.2004, p.203) admite a possibilidade de que a diocese de Caliábria tenha sido instituída ainda mais cedo, no tempo do rei Viterico (603-610) Em todo o caso, a fundação da diocese de Caliábria parece ter sido motivada pela necessidade de se dividir a diocese de Viseu e, talvez, desanexar uma parte da de Lamego, em virtude da vastidão territorial de Ribacôa e deste modo tornar menos morosas e maçadoras as visitas pastorais, na impossibilidade da nova fundação se efectuar em Miróbriga, por se encontrar arruinada. [11]

A maioria dos investigadores entende que a diocese de Caliábria foi transferida para Miróbriga ainda antes de terminar o século VII, isto é, ainda no tempo dos godos. [12] Posto que assim tenha sucedido, se não considerarmos a invasão árabe, a que se teria devido a súbita ruína da cidade episcopal? Mantendo a premissa, o enigma daí decorrente pode suscitar um dilema interpretativo: Foi a ruína de Caliábria que motivou a transferência, ou, pelo contrário, teria sido a transferência da diocese que iniciou o processo de decadência da povoação?

Há quem literalmente atribua o desaparecimento da diocese de Caliábria às invasões árabes e daí a cadeira episcopal ter passado a Ciudad Rodrigo, [13] o que de facto parece ser a melhor explicação para se compreender a destruição massiva de uma comunidade que devia ser a mais numerosa e antiga comunidade de cristãos da região, e da qual hoje resta um morro isolado e agreste.

Em todo o caso, pese embora o facto de desconhecermos os resultados da acção pastoral da efémera diocese ribacudana, fica a prova de que, afinal, os visigodos deixaram aqui um cunho do seu domínio e, passado quase milénio e meio, o título da diocese de caliábria ainda perdura como uma diocese histórica, na forma de sé titular, isto é, uma diocese que existe apenas em título, que pode ser usado por bispos auxiliares. Por exemplo D. José da Cruz Policarpo, actual Patriarca de Lisboa, foi bispo titular de Caliábria entre 1978 e 1997.

Não se torna possível identificar com propriedade nenhuma das paróquias da diocese de Caliábria por falta de provas incontestáveis, tanto na documentação escrita, como na toponímia e muito menos na arqueologia. Contudo, existe a possibilidade de a «Civitas Cobelcorum» (a extinta povoação da Torre de Almofala), pela importância que adquiriu na época romana, ter pesistido durante o domínio visigótico como uma das comunidades hispano-visigóticas tal como outros povoados de menor importância, como o castro romanizado de Santo André, na freguesia de Almofala, ou um e outro outro povoado de menor altitude, de entre as que foram as primeiras a ser mecionadas nos documentos escritos dos séculos X, XI e XII, designadamente Algodres e Almendra, a par de Castelo Melhor, tendo em conta a sua proximidade em relação ao bispado caliabriense, ou até a colina de Santa Marinha, a cerca de um quilómetro para sul da Quinta dos Vilares, na Freguesia de Penha de Águia, onde, segundo Júlio Borges, foram encontrados túmulos antropomórficos à mistura com tégulas visigóticas. A origem da povoação de Escarigo, cuja raíz toponímica hispano-visigótica tem sido posta em causa, nomedamente por Luis Filipe Lindley Cintra, que a coloca no século X, supondo-a um resultado do primeiro repovoamento de Ramiro II e Ordonho III [14], deve, por isso, ser considerada como uma hipótese remota.


DOMÍNIO ÁRABE

Referem os manuais de História que em 711, aproveitando as fragilidades da monarquia visigótica, os muçulmanos, constituídos na sua maior parte por árabes de berberes, venceram as hostes godas em Guadalete e, logo de seguida, irromperam pela Península Ibérica, levando à destruição de aldeias e cidades inteiras, antes de se fixarem nos vários espaços deixados vagos pelos cristãos que, em debandada, correram a refugiar-se nas Astúrias e de imporem um pacto de coexistência pacífica aos que não optaram pela fuga.

Estando Caliábria em ruínas, fosse por acção directa dos árabes ou por quaiquer outros motivos anteriores à invasão, e Miróbriga em situação idêntica, sujeitou-se a região de Ribacôa a cinco séculos de domínio muçulmano, período tão longo quanto obscuro para os historiadores, a respeito do qual só têm por certo que os muçulmanos colonizaram a região, com predominância do elemento berbere.

O conhecido processo da reconquista e repovoamento cristãos, iniciado nas serranias das Astúrias por Pelágio e inspirado na sua vitótória em Covadonga, em 722, só no início do século XII começou a dar as primeiras mostras de se poder concretizar em Ribacôa, com a edificação de povoamento de Ciudad Rodrigo sobre os escombros da moribunda Miróbriga e com a renovação da diocese de Caliábria na nova sede.

Seria interessante saber que povoações antecederam, sobreviveram, com maior ou menor «arabização» ou até nasceram nesse período tão longo do domínio árabe. Infelizmente, muitos dos nomes dessas localidades surgem referidas pela primeira vez em documentos do século XII, à excepção de Algodres e de Almendra, que já são mencionadas num documento do século X, e de Vilar Torpim, num documento do século XI, pelo que, na maioria dos casos, a questão permanecerá um mistério.

A presença árabe e influência da sua cultura em Ribacôa surge atestada tanto na toponímia como na arquitectura, mas tanto naquele como neste contexto, a interpretação dos investigadores, filólogos e historiadores, nem sempre são unânimes. Há quem sugira a existência de caracteres árabes num documento epigráfico existente em Castelo Rodrigo, que é a uma peça em granito que tem servido de toça sobre a porta de uma habitação situada na rua da Cadeia. Contudo, não é líquido que os grafismos sejam realmente árabes, estando a sua descodificação e datação ainda por fazer.
Os actuais topónimos de Almofala, Algodres e Almendra são os que geralmente mais se associam à origem árabe nos concelhos de Figueira de Castelo Rodrigo e Vila Nova de Foz-Côa, tal como Almeida, no concelho com este nome.

A radicação do nome Almofala na forma árabe «al-mohalla» não tem sido sujeita a quaiquer tipo de objecções e o significado que a expressão literalmente traduz - acampamento militar- pode indicar uma forte possibilidade de se tratar de um dos raros casos de povoação de origem efectivamente árabe.

Quanto ao topónimo Algodres, é sabido que ela é comum a outras povoações, tanto do distrito da Guarda como fora dele (e até semelhante aos nomes de certas localidades da vizinha Espanha), e tem sido estudado numa perspectiva geral e geograficamente descontextualizada. [15] A questão relativa à sua origem tem sido controversa. O Padre Luís Cardoso, no século XVIII, atribuiu-lhe origem latina, derivada de «algodrium», enquanto Pinho Leal sugeriu que o nome Algodres deriva de «algodrons» uma corruptela da palavra árabe «al-coton», que significa algodão.

Mais tarde Luís Ferreira de Lemos, após rectificar a expressão adiantada por Pinho Leal que devia ser «al-cutum», em vez de «al-coton» e desvalorizar a sua interpretação, propôs uma curiosa derivação de «alcortex»-«alcotrex»-«algodrex»-Algodres, sendo que «al» tanto pode ser uma palavra de origem céltica (já usada por Virgílio) como um artigo árabe, mas «cortex» é um vocábulo latino com o significado de cortiça ou casca de árvore. Temos assim um prefixo céltico ou árabe e um vocábulo latino na origem do topómimo Algodres!
Mais recentemente José Pedro Machado radica o topónimo em «algodor», plural de «gadir» que significa lago, lagoa, ribeiro ou pântano e que de facto parece ser a interpretação mais plausível, no caso da freguesia com este nome em Figueira de Castelo Rodrigo, tanto pela existência de ribeiros e nascentes a que a população ainda designa de «alagoas» como pela relação lógica que podemos fazer entre o significado do topónimo na sua expressão popular com o orago da freguesia: Nossa Senhora da Alagoa. Talvez a mesma relação se possa também fazer com a um ramo da antroponíma da povoação, sabendo-se que é oriunda de Algodres uma numerosa família da região: Os Alagos.
Relativamente ao topónio Almendra também as opiniões se dividem. Para uns «o topónimo é nitidamente árabe», [16] para outros poderá ter uma origem germânica indiciada pela forma como «Almendra (Amindula) surge em documento de 960 em doação de D. Chama a sua tia D. Mumadona», [17] para outros ainda «a hipótese mais credível é que Almendra tenha origem lácica, mais ancestra, através da seguinte evolução etimológica: "amigdala > amíndola > amêndola > amêndoa"». [18] Mas a verdade é que actualmente o artigo «al» encontra-se aglutinado em Almendra. Não será antes de admitir que talvez estejamos perante uma situação parecida à que Luís Ferreira de Lemos sugeriu para o topónimo Algodres? Almendra poderá tratar-se de um topónimo de origem pré-árabe, certamente germânica que sob o longo domínio árabe se alterou na expressão popular pela simples aglutinação do «al». Nesta perspectiva teria todo o sentido o curioso prólogo da página relativa a Almendra que encontramos no Espigueiro:
Em tropel e cavalgada, Chegaram os Agarenos: E caliábria fez-se Almendra;... [19]
Outros sinais da influência árabe podem encontrar-se na tradição oral sob a forma de mitos e lendas que compõem o ideário colectivo da população da região e em alguns pormenores da arquitectura de Castelo Rodrigo, designadamente no portal que serve de acesso à antiga cisterna, situada na rua da cadeia e é constituído por um arco em forma de ferradura cujo estilo mourisco parece incontestável. Ao lado dela, no mesmo alçado da cisterna, existe um arco em ogiva do século XVI, tipicamente manuelino. Adriano Vasco Rodrigues reconhece que a porta com o arco em ferradura da cisterna é de estilo mourisco, mas considera a possibilidade de só ter sido construída no século XIII «por artífices habituados a esse tipo de construção» sugerindo ainda que ela «pertenceu à primitiva cisterna que fazia parte da sinagoga dos judeus» servindo de Mikwéh, um compartimento de água corrente destinado ao «banho litúrgico dos judeus» que eram os «rituais do períoro menstrual das mulheres» ou os «banhos depois dos partos». Segundo o mesmo historiador a sinagoga teria sido destruída no século XV, após a expulsão dos judeus, aproveitando-se os materiais «para ampliar a cisterna, transformando-a em fonte pública». [20] A sugestão parece plausível, tendo em conta que o local se situa num dos extremos da rua da Sinagoga, topónimo que o povo conservou nas curruptelas de rua da Esnoga ou Sinoga, que é perpendicular à rua da Cadeia. Esta interpretação não exclui a possibilidade de os artífices a que se refere Adriano Vasco Rodrigues poderem ser, efectivamente, árabes, ou artiífices sob a orientação de um mestre-pedreiro árabe, posto que no século XIII os árabes ainda seriam, a par da comunidade mosaica, numerosos em Castelo Rodrigo, o que pode ser atestado pelo foral leonês de 1209, onde se estabelecem as bases jurídicas sobre as quais deviam assentar as relações entre as comunidades cristã e hebraica e se prescrevem outras regras relativamente aos «mouros».

Em conclusão, nos casos de Castelo Rodrigo, Almofala e Algodres, poucas dúvidas se podem levantar da sua ocupação pelos árabes, restando apenas a interrogação colocada por António Balcão Vicente se a persistência da influência árabe em locais como estes serão «um resultado de migrações moçárabes ou, pelo contrário resultará da "arabização" voluntarista por parte de comunidades com grande autonomia e capacidade de defesa própria que, ao sabor das conjunturas, matinham laços privilegiados, ora com cristãos, ora com muçulmanos?».[21] Como já admitimos, não há maneira de sabermos quais as comunidades, de entre as restantes que começam a surgir nos documentos dos séculos X, XI e XII, já existiriam e sobreviveram ao longo domínio árabe. Mas, tornando-se cada vez menos sustentável a clássica tese do Ermamento iniciada por Alexandre Herculano, segundo a qual uma grande parte do território que se estende da Beira até às montanhas asturianas se terá despovoado em consequência da accção militar de Afonso I das Astúrias que aí passou os mouros a fio de espada e levou consigo para o Norte todos os cristãos de encontrou, tese essa que chegou a obter larga aceitação na historiografia portuguesa e até espanhola, parece-nos razoável a conclusão de Balcão Vicente relativamente à segunda hipótese que dele atrás transcrevemos que é a da «manutenção de comunidades autóctenes até ao século XII, altura em que se intensificam as acções de povoamento de Fernando II», uma continuidade que, para o mesmo autor é também defendida por José Mattoso «quando afirma que a outorga dos foros a Ciudad Rodrigo mais não é que o reconhecimento de uma "comunidade preexistente... em situação de verdadeira autonomia... mas que persistia desde há longos anos entregue a si própria"».[22] Assim, é possível que qualquer uma das povoações da desta nossa região, para além das que acabamos de mencionar e das que já mencionámos para o período romano e visigótico, tivessem pré-existido, desde épocas mais ou menos remotas, ao domínio dos árabes e sobrevivido às movimentações destes, nas condições que Balcão Vicente atrás sugeriu, tal como já haviam convivido com a Pax Romana e com a ordem estabelecida pela curta monarquia visigótica de Toledo.


A Região sob os domínios visigótico e árabe



DOMÍNIO LEONÊS

Torna-se necessário recuar tanto quanto possível, às mais remotas instituições que proporcionaram o repovoamento e a reorganização do domínio cristão nesta região de Ribacôa, após cerca de cinco séculos de dominação árabe.
A região de Ribacôa despertou o interesse dos monarcas leoneses desde que Fernando II, em 1161, empreendeu em Ciudad Rodrigo um grande número de melhoramentos defensivos, dotando a povoação de fortes muralhas e elevando-a à categoria de bispado (transferida de Caliábria). Assim a antiga Miróbriga transformou-se na sua base de operações apontada para a região de Ribacôa, região que entendia vir a constituir uma barreira contra eventuais incursões portuguesas e sarracenas. O projecto começou por ganhar forma quando em 1167 quando dois cavaleiros, D. Soeiro e D. Gomes, netos do conde de Salamanca, decidiram fundar junto a uma ermida dedicada a S. Julião, situada na actual freguesia de Cinco Vilas, um convento-fortaleza que iria servir para exercitarem os monges-cavaleiros que haveriam de dedicar-se à guerra contra os muçulmanos que amiúde faziam algaras na região. Os planos dos cavaleiros salmantinos foram apadrinhados pelo monarca leonês que entendeu instituir nesse local a ordem militar de S. Julião do Pereiro, a qual em 1167 foi confirmada pelo Papa Alexandre III e logo Fernando II lhe fez doações em 1176 de Cinco Vilas e Reigada seguidas de Vilar Torpim, Ferreira (Ferraria?) Colmeal e Almendra (Almendra Seca) e Fonte Seca, que são as que constam de uma bula de Lúcio III de 1183. À necessidade de repovoamento da região ermada, que já havia atormentado o espírito de Afonso VII, quando, em 1158, instituíra, junto do rio Esla o Mosteiro de Moreruela (próximo de Miranda do Douro), respondeu Fernando II, em 1165 ou 1170, com a fundação em Ribacôa do Mosteiro de Santa Maria de Aguiar, que seguia a regra beneditina, mas depois da reforma de S. Bernardo, em 1174, adoptou a regra de Cister, em obediência a Moreruela. O monarca não demorou a enchê-la de doações e privilégios, tanto em Ribacôa como na margem oposta do Águeda. É provável que a ele se deva também o repovoamento de Castelo Rodrigo, topónimo que já se documenta em 1174.
Quando Afonso IX de Leão subiu ao poder, em 1188, tudo fez para honrar as aspirações do pai relativamente ao destino que deixara traçado para Ribacôa. Confirmou todos os direitos e doações que o pai havia atribuído às instituições ali criadas, e pretendendo ir mais além: melhorou a cintura de muralhas defensivas de Castelo Rodrigo e em 1209 deslocou-se aí com o propósito de outorgar pessoalmente aos seus moradores o seu primeiro foral, concebido na forma de concelho perfeito. Fixou os limites do seu termo definidos naturalmente pelos rios Côa, a Ocidente, Águeda e ribeira de Tourões, a Oriente, e Douro a Norte. O limite sul, mais difícil de traçar, ultrapassava largamente os domínios mais próximos da sede da Ordem militar de S. Julião do Pereiro, confrontando com os limites setentrionais dos termos de Vilar Maior que haviam sido concedidos em 1177, por Fernando II de Leão, logo após a conquista desta comunidade aos muçulmanos.
Com base na documentação do cartório de Santa Maria de Aguiar e noutras fontes complementares, pelas quais conhecemos as suas primeiras referências, torna-se possível identificar os vários lugares existentes dentro dos limites deste «concelho perfeito» de Castelo Rodrigo que foi o primeiro de Ribacôa. Assim, até o fim do domínio leonês, a área do seu termo seria constituída pelos lugares de Algodres (?), Almofala (apócrifo do séc. XIV - 1165), Almendra (960), Cinco Vilas (1176), Colmeal (1183), Escarigo (1331), Freixeda do Torrão (Fonte de Cantos -1181), Luzelos (1194), Mata de Lobos (apócrifo do século XIV - 1165), Nave Redonda (id. 1165), Torre de Aguiar (1165), Vermiosa (apócrifo, id. - 1165), Vilar de Amargo (século XII) e Vilar Torpim (1039), talvez também o lugar de S. Vicente de Figueira (1302) e, eventualmente, o que podia ainda restar da arruinada povoação da extinta diocese de Caliábria. O caso do lugar de Castelo Melhor encontra-se, neste âmbito, envolto de alguma polémica. As actuais povoações de Escalhão, Penha de Águia, Vale de Afonsinho e Quintã de Pêro Martins são de fundação posterior. [23]
Convém no entanto observar que uma grande maioria destas localidades possuía toda a sorte de privilégios e isenções, tanto no espiritual como no temporal, que o próprio Afonso IX e a Santa Sé não se cansavam de confirmar, que transformavam o exercício das autoridades da vila e das autoridades locais num verdadeiro quebra-cabeças e foram causas de numerosas queixas por parte das instituições às quais essas mesmas localidades, no todo ou em parte, se encontravam vinculadas, antes mesmo da criação do concelho de Castelo Rodrigo. Desse regime de imunidades e privilégios beneficiavam as localidades que atrás referimos como pertendentes à Ordem de S. Julião do Pereiro. As freguesias de Almofala, Escarigo, Mata de Lobos, Vermiosa, Figueira e Freixeda do Torrão situavam-se no domínio do mosteiro de Santa Maria de Aguiar, domínio esse que foi sendo constituído, desde 1169, à custa de largas doações dos reis de Leão, Fernando II e Afonso IX, mas também por meio de uma hábil política de compras e transacções de terras, granjas e herdades já constituídas nessas freguesias, como foi o caso da compra de partes da granja da Fonte de Cantos, na Freixeda, e da compra de vinhas em Figueira, entre muitos outros exemplos registados nos documentos da abadia. Ora, tal como acontecia nos domínios da Ordem de S. Julião do Pereiro, os caseiros das granjas e os rendeiros do Convento de Aguiar nas várias localidades que referimos também escapavam à jurisdição das autoridades civis e criminais da vila. Também nas granjas, e em algumas localidades que já o tinham sido, tais como Almofala, Figueira e Mata de Lobos, procuraram os abades fazer cumprir a imunidade de jurisdição episcopal que lhes era reconhecida pela Santa Sé.
Só com a morte do seu principal protector, Afonso IX de Leão, em 1230, e o desinteresse demonstrado pelos seus sucessores relativamente ao mosteiro de Ribacôa é que as coisas começaram a melhorar para as «justiças de Castelo Rodrigo», tendo os respectivos magistrados aproveitado a ocasião para redobrarem os seus entraves à aquisição de mais terrenos, por via da compra ou do escambo, o que fez com que as compras e transacções do mosteiro diminuíssem drasticamente até ao fim do domínio leonês.

INTEGRAÇÃO NA HISTÓRIA DE PORTUGAL
O lento processo de integração
Como bem notou António Balcão Vicente, desde o incício do processo de formação da nacionalidade portuguesa até ao reinado de D. Dinis, a intervenção portuguesa em Ribacôa foi sempre lenta, esporádica e desastrosa.
Citando este historiador, "até aos meados do século XII, D. Afonso Henriques privilegiara a expansão para Sul pela faixa litoral, em direcção ao Tejo, praticamente desprezando as áreas a Oriente do Maciço Central". [24] Enquanto isso, os monarcas leoneses vinham repovoando Salamanca (1102), fundavam a diocese de Zamora e atribuíam foral a Ledesma, em 1161 e, logo de seguida, repovoavam Ciudad Rodrigo e, a partir daí, instalavam em Ribacôa os monges bernardos que haviam de edificar o mosteiro de Santa Maria de Aguiar, por volta de 1170, e adoptar a regra de Cister, bem como os cavaleiros militares de S. Julião do Pereiro, a que atrás nos referimos. Só então D. Afonso Henriques parece dar sinais de sentir a presença leonesa naquele território como uma ameaça à suas fronteiras, sendo no contexto do rescaldo da sua desastrosa campanha de Badajoz que se lhe atribui uma carta de couto doada em 1174 ao mosteiro de Santa Maria de Aguiar, onde se alude a um documento anterior que, supostamente, dirá respeito à fundação do cenóbio pela mesma altura da sua conquista de Castelo Rodrigo aos mouros, depois perdido e novamente recuperado pelo seu sucessor que lhe daria foral no ano de 1209. Ora, se o problema da fundação portuguesa ou leonesa do mosteiro merece discussão, por ser uma questão polémica ainda em aberto, a conquista de Castelo Rodrigo por D. Afonso Henriques é uma referência no mínimo incredível e o que se continua a dizer a respeito da acção de D. Sancho I, em relação à reconquista e criação do primeiro concelho de Castelo Rodrigo, é um perfeito disparate. Após o desastre de Badajoz e do humilhante cerco a que o velho monarca em recolhimento foi sujeito pelo genro em Santarém, só em 1181, isto é 20 anos passados desde a restauração de Miróbriga (Ciudad Rodrigo) é que surge um novo episódio de intervenção portuguesa em Ribacôa, mais uma vez tratando-se de uma ofensiva militar, desta feita levada a cabo pelo infante Sancho que decerto, empenhado em vingar a afronta a que o pai fora sujeito, investe furiosamente contra Ciudad Rodrigo. Mas o moço infante foi travado nos campos de Argañon, entre Fuentes de Oñoro e Ciudad Rodrigo, cabendo-lhe a desonra de ver toda a sua cavalaria desbaratada pelos leoneses.
Dez anos depois, o derrotado de Argañon, já rei D. Sancho I, povoava Pinhel e fortificava a povoação, o que não deixou de causar algumas preocupações ao novo monarca de Leão, Afonso IX. Receando o perigo que aquela fortaleza próxima do Côa poderia representar sobre o Cima-Côa, Afonso IX transpõe o rio, em 1198, e conduz os seus melhores cavaleiros pelas cercanias de Pinhel, cujo reduto decide poupar, e depara-se com a cavalaria de D. Sancho I no campo de Ervas Tenras. Dispostos ambos os lados em dar batalha, a famosa lide de Ervas Tenras ocorreu nesse lugar do termo de Pinhel com a vitória dos cavaleiros leoneses, ali perecendo a fina flor da Nobreza portuguesa desse tempo. Não é difícil imaginar o efeito que tão dramática derrota, em terras portuguesas, deve ter produzido no ânimo de D. Sancho I e nos seus imediatos sucessores, sendo sabido, como observa Balcão Vicente, que com a vitória naquele confronto os leoneses conseguiram que "até ao final do século XIII as forças portuguesas não reivindicassem militarmente a posse da região que passou a ser quase esquecida". [25]
Os rios Douro e Côa afigurar-se-iam durante mais um século como uma fronteira natural entre os dois reinos, porém não suficientemente impermeável. Só a crise dinástica provocada pela morte de Afonso X, em 1282, e a guerra civil que a ela se seguiu, veio abrir uma conjuntura favorável à Coroa portuguesa para se resolver a seu favor a velha disputa pelas terras de Ribacôa. Como também observa Balcão Vicente, coube a D. Dinis o direito de intervir nesse conflito, adoptando uma hábil acção diplomática que lhe permitiu tirar dele todas as vantagens correspondentes aos interesses da soberania portuguesa, "doseando milimatricamente a sua intervenção militar e escolhendo diplomaticamente os cenários dessa intervenção". [26]
As primeiras accções marcantes de D. Dinis no contexto da crise dinástica em Castela datam de 1287, quando D. Dinis estabelece um convénio com Sancho IV de Castela, ajustando o duplo consórcio do seu primogénito, D. Afonso, com a infanta D. Beatriz de Castela e o de sua filha D. Constança com o príncipe herdeiro de Castela, D. Fernando. Pretendia com isto D. Dinis anular as pretensões de seu irmão lídimo D. Afonso à posse dos senhorios de Portalegre, Arronches, Marvão e Castelo de Vide, que lhe haviam tocado por testamento do pai de ambos, D. Afonso III, aproveitando o facto de os três genros do dito D. Afonso andarem em Castela, na posse desse senhorios, rebelados contra Sancho IV. O convénio previa a entrega a D. Dinis dos castelos de Moura e Mourão, que o rei português desejava para estabilizar a fronteira do Guadiana. Mas, entretanto, Sancho IV violou o acordo e fomentou guerra em Ribacôa, ocupando Guarda e Pinhel que D. Dinis havia colocado à disposição do monarca castelhano, como garantia do convénio. O sucedido deu origem a uma série de incursões militares entre os dois reinos que só a morte de Sancho IV, em 1295, pôs termo. Em Outubro desse mesmo ano, D. Dinis celebrou em Ciudad Rodrigo um acordo com Fernando IV, que precisou do aval de sua mãe, D. Maria de Molina, em virtude da menoridade daquele, acordo esse que garantia a posse de Moura, Serpa, Arronches e Aracena. Ficava assim resolvido o problema da fronteira do Guadiana, rio que segundo Balcão Vicente "deixava de ser a linha de fronteira, servindo estas praças como postos avançados para a sua defesa". Faltava resolver o problema de Ribacôa.
No ano de 1296, tirando, mais uma vez, partido da menoridade de Fernando IV, D. Dinis muda de aliados e passa para o lado dos aragoneses, apoiando o infante D. João, e, numa demonstração de força, ocupa os castelos de Ribacôa e marcha sobre Simancas, com o objectivo de ir mais além e tomar Valladolid, na compamhia dos aragoneses e dos infantes D. João e D. Afonso. Desiste do plano da tomada de Valladolid e assenta arraiais em Simancas onde se encontravam D. Maria de Molina e o seu filho, Fernando IV. Segundo Humberto Baquero Moreno, "o monarca português não chegou a atacar o reduto em que se encontravam os soberanos de Castela devido a que D. João Nunes de Lara, que o acompanhava, se ter recusado a atacar o seu próprio rei" e "segundo a crónica [de Fernando IV] um homem prometeu a D. Dinis a entrega das vilas e castelos de Castelo Rodrigo, Sabugal e Alfaiates, as quais efectivamente se entregaram sem combate".[27] Parece, pela crónica de Fernando IV, que a ocupação dos castelos de Ribacôa sucedeu após a expedição de Simancas e não, como pretende Balcão Vicente, antes dela. Em todo o caso, a marca militar deixada por D. Dinis no além Côa é incontestável.
Facto curioso que nos é dado a conhecer por Baquero Moreno, confirmando a veracidade da crónica de Fernando IV com a documentação conhecida, é que a mensagem que D. Dinis quis deixar com a sua aparatosa expedição em terras de Castela parece ter sido entendida pelos tutores de Fernando IV no sentido exacto que o rei português pretendia, pois aqueles deslocaram-se de imedato a Zamora com o fim de obterem as condições necessárias para um tratado entre os dois reinos a respeito dos castelos de Ribacôa. Esta é interpretação que Baquero Moreno faz, e que subscremos, dos factos que assim apresenta:
"A documentação conhecida comprova a crónica de D. Fernando IV. Assim, no ano que se segue a esta expedição [de Simancas] observa-se uma troca efectuada em 28 de Agosto de 1297, na cidade de Zamora, entre Fernando IV e D. Margarida, mulher de D. Pedro, conjuntamente com seu filho D. Sancho, mediante a qual estes donatários cediam ao rei de Castela as vilas e os castelos de Sabugal, Alfaiates, Vilar Maior, Almeida, Castelo Rodrigo, Castelo Bom e Castelo Melhor, recebendo em troca, a título de compensação, Galisteo, Granada e Miranda. Com este acto pretendiam os tutores de Fernando IV legitimar os seus direitos às terras de Ribacôa, ocupadas pelo rei português desde o ano anterior, de forma a permitir-lhe negociar um tratado de paz entre ambos os reinos." [28]

O Tratado de Alcanices
Duas semanas depois, no dia 12 de Setembro de 1297, celebrava-se na vila castelhana de Alcanices o aguardado tratado que previa o velho projecto de consórcio, outrora frustrado, de D. Afonso de Portugal com D. Beatriz de Castela e de D. Fernando IV com D. Constança, filha de D. Dinis e estabeleceu-se a troca de povoações fronteiriças pela qual, na Beira, o rei português viu reconhecidos os seus direitos às posse dos castelos de Ribacôa - Sabugal, Alfaiates, Almeida, Castelo Rodrigo, Vilar Maior, Castelo Bom, Castelo Melhor, Monforte - e os restantes lugares dos seus termos, cedendo ao rei de Castela, em contrapartida os direitos que possuía em Valença do Minho, Ferreira, Espargal e Aiamonte, como é afirmado por Joaquim Veríssimo Serrão. [29]
Estabelecia-se assim, de modo efectivo e duradouro, o domínio português no Cima Côa, cujo objectivo foi sempre e só, desde D. Afonso Henriques, o de garantir a existência de um espaço que na expressão de Balcão Vicente seria "o espaço suficiente para em termos de estratégia militar manter uma vigilância essencial às mivimentações inimigas no amplo espaço que das torres dos seus castelos se avistavam, ao mesmo tempo que permitia suster qualquer ataque de surpresa durante o tempo necessário para reforçar a linha de fefesa da margem ocidental."[30] Ora se esse objectivo tinha sido sempre o mesmo para os leoneses, no caso destes para reforçar a linha de defesa a Sul e da margem oriental do Águeda e ribeira de Tourões, o Tratado de Alcanices apenas veio inverter os papéis entre os dois reinos e expôr aos perigos das invasões o mesmo povo que a eles sempre esteve exposto, mas que agora passará por muitos anos a padecer do trauma de uma «dualidade de soberanias» e que cada vez mais se sentirá na necessidade de se irmanar num esforço conjunto para se proteger dos males da guerra, mas também da paz, recorrendo à tradição das «germanidades» de que resultou a Irmandade de Ribacôa, que surgem documentadas a partir do século XII, mas cujas origens podem remontar a um período anterior.

A reedificação dos castelos de Ribacôa
Logo que assumiu a direcção dos destinos de Ribacôa, D. Dinis pareceu ser um monarca diligente, nas preocupações que manifestou pelo urgente reforço da estrutura defensiva da região.
Assim, consumada a posse das praças e demais lugares de Ribacôa, logo ordenou que fossem reedificados os castelos de Alfaiates, Almeida, Castelo Bom, Castelo Melhor, Castelo Mendo Castelo Rodrigo, Pinhel, Sabugal e Vilar Maior. Numa época em que já não havia a temer os ataques dos muçulmanos, esta medida visava, não só reforçar a linha defensiva da margem ocidental do Côa, perante eventuais ataques castelhanos, mas também evitar a estagnação desta zona raiana por falta de moradores, no mesmo sentido que procedeu em todo o reino à criação de 44 vilas e fortalezas.

O castelo de Monforte
De entre os castelos de Ribacôa, a mesma sorte de reedificação não tocou a Monforte, junto ao rio Côa, "por não se considerar necessária para a segurança da região de Ribacôa", na opinião de Joaquim Veríssimo Serrão. [31] A explicação é aceitável enquanto justificativa da desvalorização militar da fortaleza, mas não o suficiente para justificar o súbito ermamento do povoado. Sobre este facto já se sugeriram explicações, no sentido de que parece ter resultado, menos da sua desvalorização militar, do que de uma fatalidade natural dos habitantes de Monforte. António Balcão Vicente interpreta o rápido despovoamento de Monforte como o resultado de um longo processo de refracção dos seus habitantes, herdeiros de uma longa tradição castreja que resistiu à sucessiva passagem de romanos, visigodos e árabes, mas não foi capaz de resistir ao rígido modelo de administração que começou por ser imposto com firmeza pela monarquia leonesa e que D. Dinis se propôs dar continuidade. Seriam assim uma comunidade de remniscência proto-histórica "cuja vida se alicerçava na pecuária e onde as elites locais emergiam do prestígio proveniente da posse de um maior número de cabeças de gado e da capacidade para os defender contra os inúmeros perigos que se apresentavam ao longo dos trajectos de transumância".[32] É quase certo que o castelo de Monforte, cuja primeira referência, curiosamente, só aparece no documento do Tratado de Alcanices, foi edificado no século XII ou XIII, certamente numa tentativa de manter os habitantes desse povoado de altura e de impôr à sua estrura gentílica um modelo de povoamento que preferia as áreas de encostas suaves junto dos leitos de ribeiras, que os romanos já tinham tentado impôr. É esta a conclusão de Antónjo Balcão Vicente quando refere que "nesta perpectiva se entenderia o abandono de alguns núcleos originais menos adequados a este modelo, como sucedeu com Monforte e Caria Talaia, numa fase em que os poderes externos começarão a fazer-se sentir, com peso, na região". [33] Resta-nos, neste sentido, acrescentar a hipótese de que quando D. Dinis adquiriu, em Alcanices, os seus direitos de soberania sobre o castelo de Monforte e decidiu da sorte da respectiva comunidade, esta já estaria em processo de desagregação.

Os castelos de Castelo Rodrigo e Escalhão
O caso de Castelo Rodrigo pode ser entendido como uma antítese dos casos que acabamos de expôr, mas isso deve-se ao facto de ter sido valorizado militarmente pelos soberanos leoneses e também por ter havido a necessidade de o repovoar com cristãos, posto que já aí se manteve a comunidade árabe, ou parte dela, como vimos, repovoamento esse que, como se sabe, foi feito com gente estranha à região, isto é, com o recurso a comunidades provenientes de várias partes da Galiza e do reino de Leão que nada tinham a ver com a tradição castreja de Ribacôa, conhecendo-se delas remniscências linguísticas, particularmente na região de Figueira de Castelo Rodrigo, que atestam a sua singularidade.
A reedificação de Castelo Rodrigo, ordenada por D. Dinis logo a seguir ao Tratado de Alcanices, só se terá concretizado em qualquer momento da primeira metade do século XIV. Não sabemos exactamente qual a configuração que teria o reduto antes desta época, sendo duvidoso que, como muitos historiadores ainda pretendem, a admirável estrutura de treze torreões semicirculares, comparáveis à fortaleza de Ávila, tenha sido obra de Afonso IX de Leão, e muito menos credível ainda a posição de outros que insistem na visão romântica da sua construção primitiva, nesse molde estrutural, pelos Túrdulos no 4.º milénio A. C., visão essa que representa a máxima expressão de um "mito dos fundadores", que as mais recentes pesquisas arqueológicas têm vindo a desacreditar. Os responsáveis dos serviços do IPPAR não têm dúvidas em atribuír a D. Dinis a edificação, em data posterior a 1297 das "robustas muralhas que envolvem o casario apoioadas em torres semi-circulares [...] e possante castelo de muros ameados, torreões, alterosa torre de menagem, fossos e barbacã, galgando rochedos". [34] Também em Escalhão D. Dinis teria mandado edificar um castelo, talves no local onde actualmente existe a igreja matriz, obra quinhentista que, em razão da sua grandeza, muitas vezes designada de igreja-fortaleza, já se sugeriu ter sido construída com base num aproveitamento de elementos arquitectónicos de uma estrutura militar medieval que podem ter pertencido ao aludido castelo.[35]

Organização municipal - foros, costumes e privilégios
Diligente e compreensivo também foi D. Dinis para com os povos de Ribacôa, estabelecendo com eles, mas sem nunca descurar os interesses do Estado, uma relação de simpatia e mesmo de condescendência, no respeito pelas suas tradições e pelas instituições que herdaram do domínio leonês. A verdade é que o carácter generoso do monarca já se houvera manifestado em 8 de Novembro de 1296, quando encontrando-se em Trancoso e crendo inabalável o seu dominio em Ribacôa, território que havia ocupado militarmente, confirmou os foros de Castelo Rodrigo e dos demais castelos que em Alcanices lhe haveriam de ser entregues, à excepção do de Castelo Melhor, cujos foros, copiados dos de Castelo Rodrigo só viriam a ser confirmados a 12 de Julho de 1298. Sabêmo-lo através de Humberto Baquero Moreno e de um documento que este historiador analisou a propósito de Castelo Rodrigo, de onde se extrai, além disso, que naquela data data D. Dinis faz uma referência expressa ao privilégio de realização de uma feira franca. Num outro documento mais tardio, datado de 1444, também analisado por Baquero Moreno, alude-se a esse mesmo ano de 1296, a propósito de uma doação de D. Dinis a Castelo Rodrigo, em conjunto com os restantes castelos de Ribacôa, do "privilégio de nunca ser dado pela Coroa a nenhum infanção, cavaleiro ou qualquer outra pessoa, mas que sempre permanecesse como património da Coroa",[36] um privilégio concedido sob petição da conhecida Irmandade de Ribacôa.

Administração religiosa - diocese e instituições
Um outro problema com que D. Dinis teve de lidar no território politicamente subtraído à soberania leonesa-castelhana foi o da reorganização da estrutura e das instituições eclesiásticas. E mais uma vez, o monarca português, sem pôr em risco a afirmação da soberania portuguesa, mostrou as suas melhores qualidades de monarca generoso, sensato e complacente. Como refere Júlio António Borges, citando a História da Cidade e Diocese de Lamego, de Monsenhor M. Gonçalves Costa, «por carta régia de 8 de Setembro de 1315, D. Dinis declarou "pertenderem-lhe os bens eclesiásticos de Rida-Côa que 'son em meu senhorio' tais como os possuíam os senhores que os houveram antes dele".» Mas depois disso, para evitar qualquer conflito com a diocese de Ciudad Rodrigo, permitiu que esta mantivesse a jurisdição dos seus bens em Ribacôa e "achou por bem deixá-los na posse dos mesmos, proibindo aos que o traziam de levantar qualquer embargo". Em contrapartida, D. Dinis teve o cuidado de, em reforço da sua autoridade, assumir uma atiutude paternalista, pelo que concedeu ao clero ribacudano o privilégio de, «apesar de estar dependente de uma diocese estrangeira ficar sob a protecção directa do rei português, "em qualquer parte dos seus domínios, proibindo que alguém ouse molestar, ou a constrangê-los a responder perante o bispo, arciprestes ou outros juizes eclesiásticos, como respondem todos os demais do reino(...) De mesmo modo, nenhum cavaleiro era autorizado a pousar em casas de clérigos ou a fazer-lhes força excepto quando viajassem na companhia de el-rei e não houvesse outras pousadas"». [37] Além disso, D. Dinis não colocou qualquer entrave a que o convento de Santa Maria de Aguiar continuasse a exercer a sua jurisdição sobre os bens que possuía em Castela, antes continuou a favorecer a instituição com na protecão d0s direitos, privilégios e isenções, que lhes ficaram dos reis leoneses.
Também a Ordem de S. Julião do Pereiro, que em 1218 passou para Alcântara, em Castela, pôde manter a sua primitiva sede em Ribacôa com os bens que aqui possuía. Sabe-se que no ano de 1321, alguns membros desta instituição ainda se encontravam no primitivo convento da Ordem em Cinco Vilas, que em Ribacôa mantinha a designação de S. Julião do Pereiro, pois é dessa data a relação de conventos que foram taxadas por D, Dinis, onde aquela consta, tal como o mosteiro de Santa Maria de Aguiar. A quantia de 60 libras taxada à Ordem de S. Julião do Pereiro é irrisória, quando comparada com o que se estabeleceu para as restantes instituições conventuais, o que nos permite concluir que já seriam parcos os seus rendimentos nesta região e pode também ser um sinal de que, por esse tempo, já teria aqui os dias contados. D. Dinis, que em 1309 já havia obtido do Papa João XXII autorização para que a Ordem de Cristo sucedesse nos bens que foram Ordem dos Templários, extinta em 1312, destinou também aos cavaleiros de Cristo, nessa época sediados em Castro Marim, os direitos e privilégios que em Ribacôa pertenciam à Ordem Militar de S. Julião do Pereiro e que, como vimos, racaíam inicialmente sobre os povoados de Cinco Vilas, Vilar Torpim, Colmeal, Reigada, e Almendra, sendo de admitir que àquela última data apenas Cinco Vilas, Vilar Torpim e Colmeal poderiam manter-se sob o poder da Ordem, uma vez que pela documentação conhecida, não há referências a qualquer tipo de transição de poder relativamente às duas primeiras localidades, e quanto a Colmeal só pelos meados do século XV existem referências de a povoação, sob a designação de Colmeal das Donas ser da donataria dos Gouveias, de que João de Gouveia Queirós, alcaide de Castelo Rodrigo, foi um dos primeiros donatários que em 1476 passou ao seu genro, Fernão Cabral, alcaide-mor de Belmonte, por determinação de D. Afonso V. Alguns genealogistas remontam o senhorio de Colmeal das Donas ao avô daquele João de Gouveia Queirós, Vasco Fernandes de Gouveia, o Velho, que também havia sido senhor de Gouveia e alcaide-mor de Castelo Rodrigo, no reinado de D. Fernando. [38] Quanto à Reigada, parece ter adquirido relativa autonomia a partir de 1268, ano em que D. Garcia Fernandes, mestre da referida Ordem lhe concedeu carta de foro, depois confirmada pelos dois mestres seguintes, D. Fernão Ponces e D. Gonçalo Perez em 1288 e 1314, respectivamente. [39] Almendra também já havia sido sido desobrigada dos direitos que a vinculavam à Ordem de S. Julião do Pereiro, pois em 1270, quando era já vila, foi doada a D. Gil Martins, que por essa causa andou muito tempo desavindo com o concelho de Castelo Rodrigo, e em 1450 D. Afonso V havia de reconhecer àquele mesmo João de Gouveia Queirós, em recompensa da sua lealdade e serviços prestados na batalha de Alfarrobeira, a jurisdição civil e criminal sobre vila de Almendra, em conjunto com a de Castelo Melhor. [40]

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